AGENDA

Intersecção (com Lu Oliveira)
FAIXA 08 | Socorro Lira

Aves de um mesmo céu
Seres da mesma paragem
Cores da mesma paisagem
Abas de um mesmo chapéu
Cortinas de um mesmo véu
Passos num mesmo sentido
Caminho torto e comprido
Por onde vamos à vida
À mesma sorte contida
Num mesmo sonho vivido

Incertezas divididas
Iguais também os desejos
Alinhados em solfejos
Nas mesmas canções sentidas
Encontros e despedidas
Histórias para contar
Que parecem se encontrar
Nos quatro cantos da terra
Onde o encanto encerra
Coisas de até assustar

Gotas de um mesmo orvalho
Na mesma noite de escuro
Tijolos de um mesmo muro
Barro de um mesmo cascalho
Cartas de um mesmo baralho
Dores de uma mesma fome
Letras de um mesmo nome
Um sorriso, muitas bocas
Um juízo, muitas loucas
Dois sobres para um pré-nome

Verbos como a ventania,
Viajam os continentes
Vão-se, soprando nas mentes
A brisa leve, poesia
Calor para a noite fria
Leveza nos dias quentes
Um só veio, duas vertentes
Uma alma em mil viveres

Verdades pra mil dizeres
De amores sobreviventes

Nessa vida ainda quero
Uma rede de balanço
Uma rede de balanço
E um amor pra balançar

Delicado
FAIXA 09 | Socorro Lira

É tão delicado isso de querer bem a alguém
Quando nem se sabe bem se esse alguém
Tem um outro bem que lhe convém!
É tão complicado isso de mandar flores
frases de amores
multicolores,
todas as cores

Há um certo risco de se sentir dores
Mas é tão humano tudo isso
É tão bom correr o risco
De acertar o coração de quem
Procura acertar também

É tão delicado
um pouco complicado
Isso de querer bem!

Remendo de Pano Feio
FAIXA 10 | Socorro Lira

Ando assim, tão assim…
Tão não sei como, sei não!
Sentinela sente não
Sei, não sei, sentido e vela
Silêncio soluçando
Solução, sol lumiando
Salva vida e caravela

Tão, tão assim pelo meio!
Arremedo e devaneio
Remendo de pano feio
No meu vestido de renda…
Meu bordado, ponto e cruz
Meu Jesus crucificado
Morto e não ressuscitado
Não sei, sei não, se ‘tou’ luz

Estou tanto tudo e nada!
Não sei se fico calada
Ou se falo sem saber
Finito ou infinito,
Dentro de mim mora um grito
Gralha, grunhido gravado
A ferro e fogo marcado
A fogo e ferro transcrito

Gema
FAIXA 11 | Socorro Lira e Roberto Adami Tranjan

Silêncio, espera infinda
Em mim geme noite, breu
Sons de bichos, mata densa
dentro da minha cabeça
Antes que eu adormeça,
me salve com olhar seu!

Gema, a luz infinita,
a lua branca de prata
Quero uma noite de festa
e o verde-azul da floresta
Desperta, me pede a dança,
clara, da cor da esperança!
O Verde-azul da esperança!

Da Coisa Linda (com Ana Costa)
FAIXA 12 | Socorro Lira

Deu-se uma coisa tão linda!
Bem vinda
Eu disse: bem-vinda
Foi me tomando de abraço
Ajuntou-me como um laço
De delicadeza infinda

Carente de outro pedaço
Era eu o estilhaço
De um ser que se partiu
Queria unir novamente
Isso que, por um repente,
A faca da dor feriu

Deu-se algo interessante
Dessa coisa diamante
Disso de não ter razão
Coisa que não tem defeito
Nem avesso e nem direito
Nada de juízo, não

Minha vontade é só sua
Vive no mundo da lua
Vai num pensamento só
Soletrando esse versinho
De ternura e de carinho
Pra dizer: de mim, tem dó!

Dó é o tom da cantiga
Dó por dó, dou essa vida
Por um só sorriso teu
Depois disso, o que me resta?
Tudo é bom
Nada não presta
Quem gosta de ti, sou eu

Poema Didáctico (com Ana Costa, Lu Oliveira e Emmanuele Baldini)
FAIXA 13 | Socorro Lira e Mia Couto

Já tive um país pequeno,
tão pequeno
que andava descalço dentro de mim
Um país tão magro
que no seu firmamento
não cabia senão uma estrela menina,
tão tímida e delicada
que só por dentro brilhava

Eu tive um país escrito sem maiúscula
Não tinha fundos para pagar um herói,
Não tinha panos para costurar bandeira
Nem solenidade para entoar um hino
Mas tinha pão e esperança pros viventes
e tinha sonhos para os nascentes

Eu tive um país pequeno,
que não cabia no mundo
meu país, meu continente
Que não cabia no mundo meu país e sua gente
Que não cabiam no mundo meu país,
meu continente
Que não cabiam no mundo meu país e minha gente
Há de caber nesse mundo meu país,
meu continente
Terá que caber no mundo, meu país
e minha gente

Cravo e Ferradura
Cristóvão Bastos, Aldir Blanc e Clarisse Grova

Primeiro foi um som leve
De peneira peneirando,
O mar de ideias de um louco,
A água dentro do coco
Foi crescendo entre palmeiras
E tambores batucando
Um balbucio, um rugido,
Um som de tragédia e circo,
Um som de linha de pesca,
Som de torno e maçarico
Veio um som de escavadeira,
Bate-estaca, britadeira,
Um som que machuca e lanha,
Um som de lata de banha,
Som de caco, som de tralha,
Era um som de mutilados
Quebrando gesso e muleta,
Um som de festa e batalha
Ah, era um som que me orgulhava,
Som de ralé e gentalha,
Era o som dos prisioneiros,
Som dos exús catimbeiros,
Ai, era o som da canalha
Trovão, forja, baticum,
Som de cravo e ferradura:
— Dez mil cavalos de Ogum!
Esse é o som da minha terra
Som de andaime despencando,
De encosta desmoronando,
De rios violentando
As margens do meu limite
Samba, samba, samba,
Pulsas em tudo que existe,
Vazas se meu sangue escorre,
Nasces de tudo o que morre

O Ronco da Cuíca | De Frente Pro Crime
João Bosco e Aldir Blanc

Roncou, roncou
Roncou de raiva a cuíca,
Roncou de fome
Alguém mandou
Mandou parar a cuíca
É coisa dos home
A raiva dá pra parar, pra interromper
A fome não dá pra interromper
A raiva e a fome é coisa dos home
A fome tem que ter
Raiva pra interromper

A raiva e a fome de interromper

A fome e a raiva é coisa dos home
É coisa dos home
É coisa dos home
A raiva e a fome
Mexendo a cuíca
Vai ter que roncar

Tá lá o corpo estendido no chão
Em vez de rosto a foto de um gol
Em vez de reza a praga de alguém
E um silêncio servindo de amém

O bar mais perto depressa lotou
Malandro junto com trabalhador
Um homem subiu na mesa do bar
E fez discurso pra vereador

Veio camelô vender
Anel, cordão, perfume barato
Baiana pra fazer pastel
E um bom churrasco de gato
Quatro horas da manhã
Baixou o santo na porta bandeira
E a moçada resolveu
Parar, e então…
Tá lá um corpo estendido no chão

Em vez de rosto a foto de um gol
Em vez de reza a praga de alguém
E um silêncio servindo de amém
Sem pressa foi cada um pro seu lado

Pensando numa mulher ou num time
Olhei o corpo no chão e fechei
Minha janela de frente pro crime

Veio camelô vender
Anel, cordão, perfume barato
Baiana pra fazer pastel
E um bom churrasco de gato
Quatro horas da manhã
Baixou o santo na porta bandeira
E a moçada resolveu
Parar, e então…
Tá lá um corpo estendido no chão

Plataforma
João Bosco e Aldir Blanc

Não põe corda no meu bloco
Nem vem com teu carro-chefe
Não dá ordem ao pessoal
Não traz lema nem divisa
Que a gente não precisa
Que organizem nosso carnaval
Não sou candidato a nada
Meu negócio é madrugada
Mas meu coração não se conforma
O meu peito é do contra
E por isso mete bronca
Neste samba plataforma
Por um bloco
Que derrube esse coreto
Por passistas à vontade
Que não dancem o minueto
Por um bloco
Sem bandeira ou fingimento
Que balance e abagunce
O desfile e o julgamento
Por um bloco que aumente
O movimento
Que sacuda e arrebente

O Mestre Sala dos Mares
João Bosco e Aldir Blanc

Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como navegante negro
Tinha dignidade de um mestre sala
E ao acenar pelo mar na alegria das regatas
Foi saudado no porto, pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
Dos santos entre cantos e chibatas
Inundando o coração do pessoal do porão
E a exemplo do feiticeiro gritava então
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o navegante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais

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